Democratização do cinema: Mauri Palos fala sobre os desafios do setor

Democratização do cinema: Mauri Palos fala sobre os desafios do setor

Criado em 03/12/2019

Diferente da maioria dos municípios brasileiros, Guaxupé possui sala de cinema há 19 anos. Empresário do setor fala sobre os desafios da área.

No domingo passado (03), o ENEM surpreendeu o mais de 50 milhões de candidatos que realizaram a prova com o tema da redação deste ano: “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”. O Portal da Cidade Guaxupé falou com um dos maiores especialistas da área. O empresário Mauri Pallos, proprietário do Cine 14 Bis. Mauri é formado em gestão Cultural, mestre em economia criativa e levou a experiência de 19 anos no setor para o maior projeto de democratização de acesso ao cinema no mundo, o Circuito SP Cine, na capital paulista.

Portal da Cidade- Você esperava este tema na redação do ENEM? 

Mauri Pallos- Na verdade não, a gente não esperava, mas todas as provas do ENEM sempre trouxeram temas interessantes para se debater e o momento é muito oportuno para debater a democratização do acesso ao cinema uma vez que a gente tem que reconhecer que o Brasil tem mais de 93% dos municípios sem sala de cinema.

Qual a situação atual do cinema nacional? 

O cinema nacional vinha num processo crescente de capacitação, de conhecimento, de ganho de mercado, de ganho econômico, inclusive. Desde 98, 99, até a criação da ANCINE (Agência Nacional do Cinema) em 2005 houve uma política muito focada no audiovisual brasileiro, tanto na produção de conteúdo, quanto na distribuição de conteúdo, quanto na capacitação de profissionais, quanto na exibição que são os canais, as próprias salas de cinema. Esse processo todo está hoje no momento estagnado já aí uns três anos e que preocupa bastante o mercado. Foi um período que está intimamente ligado ao processo político do Brasil. Nós passamos por duas trocas de governo: foi a queda de um governo, o início de um governo de dois anos somente e o início de um novo governo, que ainda está num processo de reconhecimento, mas que não demonstra muita vontade de atuar no setor audiovisual. Isso preocupa muito. É reconhecer o que já vinha acontecendo e o ganho econômico e cultural que o país tem ao investir em audiovisual.

Quais as ações que estão sendo feitas para aumentar a democratização e esse acesso da população à sétima arte? 

Precisa deixar clara que a gente está falando de salas de cinema. A sala de cinema não caminha só. Ela faz parte de uma cadeia. E nos últimos doze-quinze anos praticamente dobrou as salas de cinema no Brasil. Nós passamos no período de 2006, que o país tinha 1.900 salas de cinema para neste ano de 2019, mais de 3.100 salas de cinema. Porém, nos últimos dois anos, não se inaugurou tantas salas de cinema quanto se imaginava. O Brasil hoje tem, repetindo, basicamente 93% dos municípios sem salas de cinema. Municípios abaixo de 100 mil habitantes, não são nem 200 municípios que têm sala de cinema no Brasil.

Nós temos uma distribuição de salas de cinema de que a cada 65 mil pessoas tem uma sala de cinema. Enquanto que no Chile é uma sala de cinema para 30 mil pessoas. O acesso é muito maior, muito mais fácil.

É lógico que o equipamento de cinema é todo importado, a relação com as distribuidoras, quem mais domina o mercado de cinema é Hollywood, são multinacionais e a gente fica na dependência da negociação com eles.

É caro fazer uma sala de cinema. A Ancine antes tinha o incentivo e por isso abriram tantas salas. O preço do ingresso chegou a cair pouco, hoje em dia está estagnado. A gente tem expectativa que se amplie a sala de cinema, mas falando por outro lado, em produção audiovisual, nós temos outros canais como streaming como Netflix, e outras maneiras de assistir às produções nacionais audiovisuais que aumenta a cada ano, ou que vinha aumentando há dois anos até essa estagnação.

Um dos projetos mais importantes do mundo e é um projeto ímpar, que não existe em outra cidade do mundo, é o projeto como feito o Circuito SP Cine em São Paulo, que a gente tem a grata função de executar e fazer a gestão desse projeto lá.

São 20 salas de cinema para a população. Está em toda a região periférica de São Paulo, do município de São Paulo. Estamos atendendo à comunidades às vezes com 200 mil habitantes, que não tem uma sala de cinema comercial e tem Circuito SP Cine que é um modelo público de sala de cinema com ingresso gratuitos, na maioria das salas e que a gente percebe nitidamente pelo feedback que a população nos dá de que como é importante para a formação dos jovens que estão ali, dos adultos que nunca tiveram oportunidade de ir a uma sala de cinema, ou há muitos anos não ia à uma sala de cinema.

Tem filmes hollywwodianos, filmes nacionais, filmes fora do circuito comercial, passamos em todas as salas os filmes das Mostra Internacional de Cinema, ou seja, o que não foi exibido em sala de cinemas no mundo já foi exibido no Circuito SP Cine e isso para a população é muito importante, quando você dá acesso à Cultura, você possibilita que as pessoas se reconheça uma tela de cinema, conheça outras culturas em uma tela de cinema.

O que os candidatos do ENEM deveriam ter abordado sobre este tema?

São inúmeros. Eu acho que para o ENEM o que pesa mais é a argumentação a capacidade da pessoa que participou do ENEM de se expressar. Isso que mais interessa para as avaliações do ENEM, não necessariamente a opinião, mas a opinião dele, ele pode abranger diversos temas desde o valor de ingressos, de mais incentivo público para as salas de cinemas, até a interiorização do cinema, de levar cinemas para o interior. Nós temos um caso raro em uma cidade como Guaxupé, com 50 mil habitantes ter uma sala de cinema há 19 anos. Isso não é qualquer município brasileiro que tem. Isso inclusive nos deu gabarito para fazer o trabalho que a gente faz hoje de consultorias em economia criativa e para salas de cinema.

Pode-se se falar sobre a produção nacional, a quantidade de filmes que vão para as salas de cinema. E não está a contento, poderia ir mais conteúdos. Pode-se falar sobre a importância do cinema para a comunidade no entorno desse cinema- não só pelo ganho cultural, mas pelo o ganho cultural. São poucos os pontos de encontro.

Uma pesquisa recente mostra que o ponto de encontro cultural mais significativo são as igrejas, os cultos e em segundo lugar o cinema. É o segundo lugar que as pessoas mais usam para se encontrar. Onde você percebe que o seu vizinho ri da mesma coisa que você ri, chora da mesma coisa que você chora e você tem a experiência do coletivo que é muito significativo, muito importante. Tira um pouco daquele individualismo que muitas vezes os celulares e o streaming faz que é isolar as pessoas e traz para uma conviv0ência e isso só tem a ganhar porque você convive com a diversidade e você só tende a crescer. Você tende a conhecer novas culturas.

Ele pode entrar no tema de cada filme, como por exemplo o que aconteceu com “Bacurau”. Um filme nacional premiado internacional, em Cannes, inclusive, o filme nacional hoje com maior bilheteria espontânea no Brasil. E foi significativo o público que foi para o Bacurau, um filme sem patrocínio de uma emissora como a Globo, que ajuda na divulgação de filmes assim.

Dentro desse tema tem bastante coisa para se discorrer.

Quais os são os desafios de ter uma sala de cinema em uma cidade como Guaxupé? 

O desafio é enorme. Até um parêntese aqui, as pessoas de Guaxupé que prestaram ENEM, podem ter um subsídio maior, agora imagina quem prestou ENEM e mora numa cidade que nunca teve cinema. Ou que há 40 anos não tem cinema. Ele nem sabe mencionar a importância de um cinema e talvez ele não tenha a dimensão de como fazer isso. Muita gente conhece o trabalho nosso, o que a gente fez, estamos aqui há muito tempo, passamos pela construção e montagem do Instituto 14 Bis, que manteve cursos de teatro, cursos de audiovisual, cursos livres. Já imaginou quantas vezes você mudou a sua vida por escutar uma música, ou por ler um livro, ou assistir um filme? Imagina então o quanto isso interfere na vida das pessoas. Agora manter isso numa cidade do interior é realmente muito difícil.

A gente tem bastante dificuldade, inclusive dificuldade de programação. A gente tem uma sala só. Programar uma sala é difícil. O Brasil hoje, contando todos os filmes internacionais que são estreados no Brasil, a gente tem por semana que cinco a seis títulos na semana. Como vou passar seis títulos em uma sala só. É difícil programar. E a gente tem que partir de escolha, depende de negociação e proposta com as distribuidoras, é uma série de dificuldades sim. A gente vai trabalhando aos poucos, a cidade responde. A gente tem muito a agradecer à Guaxupé e região.

Recentemente fizemos uma pesquisa e mais de 40% do público do 14 Bis, vem da região. E eles vêm não só para o cinema. Eles vêm porque tem opção de cinema, tem opção de pizzaria, tem opção de um bar, de uma faculdade. Guaxupé é muito importante para a região. A gente tem que reconhecer isso e tratar bem a cidade para receber essas pessoas que vêm de fora.